CAPÍTULO 4
o portal para o mundo
A PRIMEIRA LIÇÃO DE LIBERDADE
CAPÍTULO 4
o portal para o mundo
A PRIMEIRA LIÇÃO DE LIBERDADE
Ao ler o texto anterior, meu irmão fez considerações que mudaram a forma como eu via essa história. Ele me disse que, nas minhas memórias de infância, ele estava lá. Ele era a pessoa que me acompanhava durante aquelas fugas, o braço que me guiava, a mão que me segurava. Ele, mais novo do que eu, também sentia a necessidade de escapar, de ir além do que era conhecido, e juntos fazíamos disso uma jornada compartilhada.
O fato de ele cobrar sua presença no meu texto me trouxe uma reflexão importante. Percebi que a nossa memória é cheia de camadas e, ao contar minha versão, acabei deixando de lado a versão dele.
Isso me fez refletir profundamente sobre a maneira como a nossa memória, muitas vezes, é moldada por nossa própria visão do mundo. Acredito que meu irmão estava certo. Ele estava lá, ao meu lado, em cada uma das minhas fugas, e o que eu percebia como uma presença protetora invisível pode, de fato, ter sido ele. Essa reflexão me fez revisar o texto e perceber que a memória que eu construí não contemplava a sua experiência.
Desde pequena, eu sentia um impulso incontrolável de sair, de ir além do que conhecia. Era como se o mundo me chamasse para algo maior. Esse desejo de liberdade surgiu de uma forma simples, mas mágica: um pequeno ponto de passagem, uma abertura invisível no muro da minha casa, que me servia como portal para o desconhecido. Ali, nesse pequeno buraco, morava o começo de uma aventura que, até hoje, me leva a explorar o mundo e a mim mesma. Até hoje ninguém sabe quem incentivava quem a passar pelo buraco do muro. Porém, esse incentivo sempre se fez presente em nossa jornada, desde quando a gente fugia, como a minha ida pra Portugal, e quando a gente brincava que eu era uma artista em ascensão, mesmo bem antes de ser.
Eu me lembro de acordar cedo, muito antes de todos, ainda com os olhos pesados de sono, mas com uma energia que não podia ser ignorada. Era como se, de repente, eu fosse puxada para fora da segurança de casa e empurrada em direção a algo novo. Sem hesitar, atravessava aquele ponto de transição e me dirigia até a casa dos meus avós. Chegava lá como quem trazia uma surpresa inesperada, e meu avô me recebia com um carinho tão genuíno que se tornou uma das minhas memórias mais afetivas. "Minha bichinha de bobô!" — ele me chamava, uma expressão cheia de ternura, que fazia com que eu me sentisse especial, amada e acolhida.
Mas havia algo mais. Algo que eu só fui compreender mais tarde. Em muitos desses momentos, enquanto caminhava sozinha, com os primeiros raios de sol iluminando o meu caminho, uma sensação forte me envolvia. Eu não estava sozinha. Olhava para o lado e via, sem ver um rosto, uma presença ao meu lado. Alguém que me acompanhava, guiava, e me segurava a mão. Não era uma presença humana, mas uma sensação de proteção silenciosa, como se algo maior estivesse ali, me cuidando.
Durante anos, acreditei que era um anjo da guarda. A presença era de alguém grande, mas eu não conseguia identificar quem era. Olhava para o céu e não encontrava rosto, apenas uma sensação de companhia. Eu sabia que não estava sozinha e que algo ou alguém estava ao meu lado, cuidando de mim. Não lembro ao certo, mas essa história do anjo da guarda possivelmente tenha sido inserida pela minha avó. Imagine chegar duas crianças de manhã cedo na casa dela do nada. Naturalmente, ela deve ter perguntado: "Veio com quem?" — como nunca tive filtro, devo ter dito na maior naturalidade: "uma mulher, mas eu não vi o rosto".
Isso me levou a refletir mais profundamente sobre como as percepções da infância e as histórias que contamos sobre o passado são moldadas pelas diferentes lentes com as quais olhamos o mundo. A observação do meu irmão, que também me acompanhava me fez questionar o que realmente significa a presença de um anjo da guarda — será que ela é sempre intangível, ou pode ser a presença concreta de alguém que amamos, que nos guia, nos protege, mesmo sem saber que está fazendo isso?
Essa reflexão foi além da minha própria experiência. Foi quando ele citou a psicanálise, e me fez pensar sobre os conceitos sobre os mecanismos de defesa e as influências da infância, que a ideia de “fuga” ganhou uma nova dimensão para mim. Eu decidi, então, buscar uma compreensão mais profunda sobre como a psicanálise lida com essas questões de proteção, fuga e os ecos da infância em nossa vida adulta.
O que aprendi, tanto com as lembranças da minha infância quanto com as reflexões que meu irmão trouxe, é que os “anjos da guarda” não são necessariamente seres intangíveis e distantes. Eles podem ser pessoas reais, presentes em nossas vidas, nos guiando de maneiras sutis e, muitas vezes, invisíveis. Pode ser alguém que segura nossa mão em momentos de incerteza, ou até mesmo uma sensação interior de proteção que nos leva a buscar o desconhecido com coragem.
Foi também nesse período que, após taparem o buraco do muro, encontrei um novo espaço de refúgio: o telhado de casa. Eu passava praticamente o dia em cima dele, um terror para a minha mãe, que vivia preocupada — e com razão, já que, em tempos de chuva, algumas goteiras apareciam, fomentadas pelas minhas andanças se equlibrando entre as linhas de telhas. Ainda assim, eu amava estar lá em cima, observando o mundo de outro lugar, esperando, muitas vezes ansiosamente, minha mãe chegar do trabalho. Para mim, era o momento mais feliz do dia. E quando meus pais se separaram, eu fazia uma festa com cada visita do meu pai.
Essas fugas, então, não são apenas momentos de escape. Elas representam a busca por algo mais profundo, por proteção emocional, por liberdade — a necessidade de encontrar um lugar seguro onde possamos ser nós mesmos, longe de qualquer ameaça externa. E, à medida que crescemos, muitas vezes procuramos esses espaços de liberdade, mesmo sem saber exatamente onde encontrá-los ou como identificá-los.
Fuga e Proteção na Psicanálise
A psicanálise nos ensina que a infância é um período fundamental de formação da nossa personalidade e dos nossos mecanismos de defesa. Freud, ao estudar a psique humana, introduziu o conceito de "mecanismos de defesa", processos pelos quais o ego se protege contra ansiedades e traumas. A fuga, muitas vezes, é uma resposta instintiva e natural da criança a um ambiente que causa medo ou desconforto. No meu caso, aquela fuga pelo buraco no muro era a minha forma de lidar com o que eu não sabia como processar, mas também era uma maneira de buscar algo mais, um espaço onde eu me sentisse livre, sem pressões.
Além disso, psicanalistas como Melanie Klein sugerem que as primeiras experiências infantis deixam uma marca duradoura no nosso comportamento e na forma como interagimos com o mundo. A infância, para Klein, é o campo onde se formam as primeiras fantasias e angústias, e essas experiências reverberam ao longo da vida, influenciando nosso entendimento sobre nós mesmos e nossos relacionamentos.
No final, a verdadeira liberdade começa dentro de nós. Ela é algo que podemos acessar a qualquer momento, mesmo nas menores ações do cotidiano, nas fugas mais simples ou nas decisões mais difíceis. A liberdade, assim como os anjos que nos acompanham, está sempre presente, mesmo quando não a vemos de imediato. E, talvez, as fugas que fazemos ao longo da vida sejam, na verdade, os portais que nos levam de volta a nós mesmos, nos conectando com nossa essência e com o que realmente importa: a busca constante por liberdade e autenticidade.
Já pensou que você pode ser um anjo na vida de alguém?
CHAPTER 4
the gateway to the world
THE FIRST LESSON IN FREEDOM
When I read the previous text, my brother made some comments that changed the way I saw this story. He told me that, in my childhood memories, he was there. He was the person who accompanied me during those escapes, the arm that guided me, the hand that held me. He, younger than me, also felt the need to escape, to go beyond what was known, and together we made it a shared journey.
The fact that he demanded his presence in my text brought me an important reflection. I realized that our memory is full of layers and, in telling my version, I ended up leaving out his version.
This made me think deeply about how our memory is often shaped by our own view of the world. I believe my brother was right. He was there, by my side, in each of my escapes, and what I perceived as an invisible protective presence may, in fact, have been him. This reflection made me revise the text and realize that the memory I had constructed did not include his experience.
Ever since I was little, I felt an uncontrollable urge to go out, to go beyond what I knew. It was as if the world was calling me to something greater. This desire for freedom came about in a simple but magical way: a small passage point, an invisible opening in the wall of my house, which served as a portal to the unknown. There, in that small hole, was the beginning of an adventure that, to this day, leads me to explore the world and myself. To this day, no one knows who encouraged whom to go through the hole in the wall. However, this encouragement was always present in our journey, from when we ran away, like my trip to Portugal, and when we joked that I was an artist on the rise, even well before I was.
I remember waking up early, long before everyone else, still heavy-eyed from sleep, but with an energy that couldn't be ignored. It was as if I was suddenly pulled out of the safety of home and pushed towards something new. Without hesitation, I crossed that transition point and headed for my grandparents' house. I arrived there like someone bringing an unexpected surprise, and my grandfather welcomed me with such genuine affection that it became one of my fondest memories. “My silly little pet!” - he would call me, an expression full of tenderness that made me feel special, loved and welcomed.
But there was something else. Something I only understood later. In many of those moments, as I walked alone, with the first rays of sunlight illuminating my path, a strong sensation enveloped me. I wasn't alone. I would look to the side and see, without seeing a face, a presence beside me. Someone accompanying me, guiding me and holding my hand. It wasn't a human presence, but a feeling of silent protection, as if something bigger was there, watching over me.
For years, I believed it was a guardian angel. The presence was of someone big, but I couldn't identify who it was. I looked up at the sky and found no face, just a feeling of companionship. I knew I wasn't alone and that something or someone was by my side, watching over me. I don't remember for sure, but this story of the guardian angel may have been inserted by my grandmother. Imagine two children arriving at her house early in the morning out of the blue. Naturally, she must have asked: “Who did you come with?” - Since I never had a filter, I must have said as naturally as possible: “A woman, but I didn't see her face”.
This led me to reflect more deeply on how perceptions of childhood and the stories we tell about the past are shaped by the different lenses through which we look at the world. The observation of my brother, who was also accompanying me, made me question what the presence of a guardian angel really means - is it always intangible, or can it be the concrete presence of someone we love, who guides us, protects us, even without knowing that they are doing so?
This reflection went beyond my own experience. It was when he mentioned psychoanalysis, and made me think about the concepts of defense mechanisms and childhood influences, that the idea of “escape” took on a new dimension for me. I then decided to seek a deeper understanding of how psychoanalysis deals with these issues of protection, escape and the echoes of childhood in our adult lives.
What I learned, both from my childhood memories and from the reflections my brother brought, is that “guardian angels” are not necessarily intangible, distant beings. They can be real people, present in our lives, guiding us in subtle and often invisible ways. They can be someone who holds our hand in moments of uncertainty, or even an inner sense of protection that drives us to seek out the unknown with courage.
It was also during this period that, after the hole in the wall had been plugged, I found a new place of refuge: the roof of the house. I spent practically the whole day on top of it, a terror for my mother, who was always worried - and rightly so, since, in rainy weather, some drips would appear, encouraged by my wandering around balancing between the rows of tiles. Even so, I loved being up there, observing the world from another place, often waiting anxiously for my mother to arrive home from work. For me, it was the happiest moment of the day. And when my parents split up, I celebrated every time my father visited.
These escapes, then, are not just moments of escapism. They represent the search for something deeper, for emotional protection, for freedom - the need to find a safe place where we can be ourselves, away from any external threat. And as we grow up, we often look for these spaces of freedom, even if we don't know exactly where to find them or how to identify them.
Escape and Protection in Psychoanalysis
Psychoanalysis teaches us that childhood is a fundamental period in the formation of our personality and our defense mechanisms. Freud, when studying the human psyche, introduced the concept of “defense mechanisms”, processes by which the ego protects itself against anxieties and traumas. Escape is often a child's instinctive and natural response to an environment that causes fear or discomfort. In my case, that escape through the hole in the wall was my way of dealing with what I didn't know how to process, but it was also a way of seeking something more, a space where I felt free, without pressure.
In addition, psychoanalysts such as Melanie Klein suggest that early childhood experiences leave a lasting mark on our behavior and the way we interact with the world. Childhood, for Klein, is the field where the first fantasies and anxieties are formed, and these experiences reverberate throughout life, influencing our understanding of ourselves and our relationships.
In the end, true freedom begins within us. It's something we can access at any time, even in the smallest everyday actions, the simplest escapes or the most difficult decisions. Freedom, like the angels who accompany us, is always there, even when we don't see it right away. And perhaps the escapes we make throughout life are actually the portals that lead us back to ourselves, connecting us with our essence and with what really matters: the constant search for freedom and authenticity.
Have you ever thought that you could be an angel in someone's life?